“Quem cuida de quem cuida?”: as novas configurações do trabalho de cuidados
Liliane Bordignon de Souza, pesquisadora da Fundação Carlos Chagas, aborda estudo voltado para a economia, a história, a educação e o direito do trabalho de cuidados
Quem cuida de quem cuida? O trabalho de cuidados é, geralmente, atribuído às mulheres como uma função biológica ou natural. Assim, ele foi e é exercido, historicamente e majoritariamente, por mulheres, de múltiplas formas, como no caso das atividades domésticas (limpar, cozinhar, lavar, etc.) ou nos cuidados de crianças e idosos nas residências.
O assunto tem sido pautado na academia e na imprensa, em estudos, como o dossiêTrabalho doméstico: registrar e (re) pensar o Brasil, publicado no Cadernos de Pesquisa, e avaliações de nível nacional, como o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), que em 2023 elegeu como seu tema de redação os Desafios para o enfrentamento da invisibilidade do trabalho de cuidado realizado pela mulher no Brasil.
O projeto de pesquisa intituladoSaindo da crise: as novas configurações dos trabalhos de cuidado, financiado peloConselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPQ)e coordenado pela professora Márcia de Paula Leite, da Unicamp/UAM, tem como objetivo compreender as mudanças relativas a esse grupo ocupacional.
Iniciado em 2022, o estudo conta com pesquisadores e pesquisadoras de diversas áreas do conhecimento para a investigação do tema e da chamada crise dos cuidados, especialmente após a pandemia de covid-19.
De acordo comLiliane Bordignon de Souza, membra doDepartamento de Pesquisas Educacionaisda Fundação Carlos Chagas e integrante do projeto, fatores como o envelhecimento da população e as reconfigurações do trabalho de reprodução social, associadas ao aumento da participação de mulheres no mercado, tem alterado significativamente o trabalho de cuidado.
Liliane, ao longo da pesquisa ainda em andamento, se debruçou a investigar a formação profissional dessas cuidadoras no âmbito da educação para o trabalho. Como as mulheres, principais responsáveis pelo cuidado de crianças e idosos dependentes, aprendem as atividades e técnicas que permitem cuidar desse grupo geracional?
Durante a pesquisa foram realizadas entrevistas e um grupo focal com cuidadoras de idosos que trabalham no estado de São Paulo e Bahia. Com os relatos coletados com essas trabalhadoras, foi possível identificar hipóteses relevantes sobre as estratégias de formação profissional desse grupo.
Nos depoimentos, a pesquisadora compreendeu, por exemplo, as múltiplas possibilidades de formação em cursos profissionalizantes de curta duração e a visão das cuidadoras sobre o curso de enfermagem, enquanto uma estratégia de adquirir técnicas de cuidados mais rebuscadas, que lhes dariam maior segurança no exercício do trabalho.
“A falta de tempo e as atividades domésticas as impedem de ampliar sua formação, o que poderia (ou não) impactar seus salários e condições de vida. A ausência de cursos gratuitos em horários oportunos para as trabalhadoras é um fator de seleção. Além disso, o diploma não é fundamental para que elas adquiram e permaneçam no emprego de cuidadoras”, indica a pesquisadora.
O acúmulo de trabalho profissional e doméstico aparece como um fator determinante na possibilidade de as cuidadoras entrevistadas concluírem a formação profissional. A falta de perspectiva, segundo Liliane, pode estar associada diretamente às oportunidades de formação profissional e a ausência de incentivos para o aumento da escolarização das trabalhadoras.
Para a pesquisadora, a profissionalização do trabalho de cuidado no espaço doméstico está em processo de construção e as cuidadoras têm procurado estratégias de formação profissional e de reconhecimento da profissão pelo Estado como forma de enfrentamento da falta de valorização do trabalho e do baixo assalariamento.
“Quem cuida de quem cuida? O trabalho de cuidado foi atribuído às mulheres e não existe uma coletividade que se responsabiliza pelo cuidado dos idosos. É preciso pensar e refletir também sobre como o trabalho dessas profissionais acontece e em quais condições de formação”, complementa.
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