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“Abrir portas e escancarar muros”: pesquisadora comenta os desafios da adoção de ações afirmativas para população trans nas universidades brasileiras

Sara Wagner York é autora do primeiro trabalho acadêmico voltado à análise de políticas públicas e das vivências de estudantes trans no ensino superior no Brasil

Jade Castilho

Publicado em:

16/05/2025 14:37:45

Em 2018, a Universidade Federal do Sul da Bahia (UESB) adotou as cotas de acesso à graduação para pessoas transexuais, travestis e transgêneros. A instituição foi pioneira na iniciativa no Brasil e, ao longo dos últimos anos, outras universidades incluíram a política de ação afirmativa em seus processos de seleção. 

A iniciativa, que começou em 2018, visa reduzir a exclusão dessas populações na educação e no mercado de trabalho. Segundo a Antra (Associação Nacional de Travestis e Transexuais), apenas 0,3% das pessoas trans no Brasil conseguem acessar o ensino superior.

No Estado de São Paulo, a Universidade Federal do ABC (UFABC) foi a primeira instituição a instituir políticas de ação afirmativa para a população trans em 2017, com a reserva de 1,5% das vagas oferecidas por curso, campus e turno a partir do vestibular em 2018. 

As cotas trans são um tipo de ação afirmativa que reserva uma porcentagem das vagas de graduação e pós-graduação para pessoas trans, travestis e não-binárias com o objetivo de  garantir que este grupo, que frequentemente enfrenta discriminação e desigualdade de oportunidades, tenha acesso ao ensino superior em igualdade de condições com outros estudantes. 

Vozes trans na academia

O primeiro trabalho acadêmico sobre o tema de cotas específicas para travestis e transexuais no ensino superior brasileiro foi escrito pela pesquisadora, educadora e jornalista, Sara Wagner York. 

O estudo foi desenvolvido no âmbito de seu mestrado em Educação pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) com o título Ações Afirmativas para Travestis e Transexuais: um estudo sobre a construção de políticas públicas de acesso e permanência na Universidade. 

A pesquisa surge, segundo Sara, do reconhecimento de que, apesar dos avanços nas políticas de inclusão racial e social nas universidades brasileiras, as pessoas trans ainda permanecem marginalizadas, seja pelo não acesso aos cursos superiores, seja pelas múltiplas barreiras enfrentadas para permanecer e concluir a formação acadêmica.

Por meio de entrevistas com travestis e transexuais que já estavam inseridas na universidade, além da análise de documentos institucionais, a pesquisadora buscou construir um modelo interseccional de ações afirmativas que contemplasse não apenas a identidade de gênero, mas também as interações com raça, classe, território e outros marcadores sociais da diferença.

O trabalho de Sara foi o primeiro a sistematizar, teoricamente e metodologicamente, uma proposta de cotas específicas para travestis e transexuais, que contribuiu, diretamente, para a formulação de políticas em diversas instituições públicas. "Foi também uma tentativa de inscrever a figura da travesti e da pessoa trans como sujeitos de direito no campo educacional, rompendo com séculos de invisibilidade e exclusão", afirma a pesquisadora. 

Reconhecimento 

Em um cenário de somente 0,3% de pessoas trans matriculadas em universidades no Brasil, a pesquisadora alerta ao fato de como as cotas na graduação e na pós-graduação funcionam como instrumentos reparadores e estruturantes para reverter essa realidade. 

Ao romperem com a reserva de vagas, políticas de ações afirmativas como essas representam, para Sara, um reconhecimento institucional das desigualdades vividas por pessoas trans, que resultam na evasão escolar precoce, na falta de apoio familiar e social e nos altos índices de marginalização e exclusão social. 

"Essas ações afirmativas sinalizam que essas vidas importam e que o saber produzido pelas e sobre as pessoas trans também tem valor epistêmico e político. Elas também provocam transformações no ambiente universitário, que passa a ser confrontado com outras formas de existência, de produção de conhecimento e de presença nos espaços institucionais", comenta Sara. 

Com relação aos desafios da implementação de ações afirmativas como essa nas universidades brasileiras, a pesquisadora reforça a necessidade de políticas de permanência, como auxílio moradia, alimentação, transporte, apoio psicológico, respeito ao nome social, uso adequado dos banheiros, formação da comunidade acadêmica em diversidade e inclusão, para garantir que a entrada não seja apenas simbólica, mas que se traduza em trajetórias acadêmicas completas e emancipatórias.

"Portanto, ações como essas não só viabilizam a presença de pessoas trans nas universidades, como também colocam em xeque o próprio modelo de produção de conhecimento cisnormativo, fazendo da universidade um espaço mais democrático, plural e comprometido com a justiça social", explica Sara. 

Romper estruturas e escancarar muros

Em 2025, a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e a Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) passaram a integrar o grupo de universidades brasileiras que adotaram essa política afirmativa. 

Com a adesão às cotas para pessoas trans, a Unicamp, por exemplo, passou a responder institucionalmente por questionamentos com relação aos efeitos que poderiam causar para as vagas de ampla concorrência.

A partir das reações diversas que iniciativas como essa recebem, para a pesquisadora, um discurso antigênero, além do próprio relacionado à transfobia, se faz muito presente e naturaliza a exclusão não somente para pessoas cisgênero, mas também para meninas e meninos trans. 

"Eles não acreditam porque foram ensinados a não acreditar. E é aí que entra a responsabilidade do Estado, das universidades e também da sociedade civil: garantir não só a política pública, mas também a construção de um imaginário que diga, com todas as letras, que travestis e transexuais merecem estar aqui [na universidade]", declara Sara. 

Durante a entrevista para essa reportagem, a pesquisadora e também jornalista atenta para a importância de um espaço de diálogo como esse no enfrentamento e denúncia dos mecanismos de exclusão social. 

"Que essa entrevista ajude a abrir portas, mas também a escancarar os muros que ainda tentam nos manter do lado de fora", completa. 

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Sobre a entrevistada

Sara Wagner York ou Sara Wagner Pimenta Gonçalves Júnior é bacharel em Jornalismo, licenciada em Letras Inglês, Pedagogia e Letras vernáculas. Especialista em educação, gênero e sexualidade, primeiro trabalho acadêmico sobre as cotas trans realizado no mestrado e doutoranda em Educação (UERJ) com bolsa CAPES, além de pai, avó. Reconhecida como a primeira trans a ancorar no jornalismo brasileiro pela TVBrasil247.

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