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Uso de jogos de linguagem como forma de resistência no Rio Xingu é tema de melhor tese defendida em 2021 na área de Ensino

Pesquisador da Universidade Federal do Pará coletou os dados a partir da realidade de 11 alunos de uma escola ribeirinha

03/01/23 | Por Alessandra Leite

Cartaz com os dizeres: Prêmio CAPES de Tese 2022. Uso de jogos de linguagem como forma de resistência no Rio Xingu. Melhor tese na área de Ensino. Fundação Carlos Chagas. A imagem tem fundo cinza, com texto centralizado em cinza e vermelho e duas linhas curvas vermelhas: uma no canto superior esquerdo e outra no canto inferior direito.

A sensibilidade em perceber o quanto o modo de vida dos povos ribeirinhos do Rio Xingu, no oeste do Estado do Pará, foi afetado pela implantação da Usina Hidrelétrica de Belo Monte (UHEBM) levou o pesquisador Marcos Formigosa, da Universidade Federal do Pará (UFPA), a desenvolver seu doutorado intitulado As Etnomatemáticas dos alunos ribeirinhos do Rio Xingu: jogos de linguagem e formas de resistência. Pelo resultado, Marcos foi premiado como autor da melhor tese defendida em 2021 na área de Ensino e também ganhou o Grande Prêmio Cândido Rondon, de Ciências Exatas, Tecnológicas e Multidisciplinar, do Prêmio CAPES de Tese, e um prêmio adicional da Fundação Carlos Chagas, parceira da iniciativa nas áreas de Educação e Ensino. 

Ancorada no campo da Etnomatemática, a pesquisa se baseia em pressupostos teóricos e metodológicos na perspectiva das ideias de Ludwig Wittgenstein, em sua obra de maturidade, e de Michel Foucault, considerando que ambos os filósofos tomam a linguagem como elemento de problematização.

Marcos ressalta que o objetivo geral da tese consistiu em examinar de que modo os jogos de linguagem expressos por um grupo de estudantes ribeirinhos se constituem como formas de resistência às influências da Usina Hidrelétrica de Belo Monte.

“Os sujeitos da pesquisa constituem um grupo de 11 alunos de uma escola ribeirinha do município de Altamira, no estado do Pará. Coletamos os dados por meio de registros em diário de bordo, frutos de conversas formais e informais, em que pude acompanhar atividades desenvolvidas no local e materiais produzidos pelas crianças por meio de uma cartografia social”, explica.

Os jogos de linguagem analisados na tese foram verbais e não verbais, com o corpo, os gestos, as práticas e a alimentação. “Wittgenstein considera que cada grupo social cria suas próprias gramáticas, ou seja, suas próprias regras de linguagem. Por isso a ideia de jogos, pois cada jogo tem suas regras”, esclarece.

O pesquisador relata ainda que, por se tratar de um campo empírico, a análise foi feita especificamente a partir da atividade de pesca desenvolvida na comunidade.

“As crianças aprendem todos os dias como ser pescador,
como pescar um peixe grande,
como comercializar esse peixe grande, onde,
quais apetrechos, ferramentas.
Esses jogos e linguagens que são mobilizados dentro desse contexto
garantem que as crianças se apropriem deles
e os reproduzam em outros momentos
e outros espaços”.

(Marcos Formigosa, autor da melhor tese na área de Ensino no Prêmio CAPES de Tese 2022)

 

O papel da escola na resistência e preservação de práticas

Por meio das narrativas das crianças, o autor da tese observou que algumas das etapas da atividade de pesca já estão comprometidas pela transformação causada pela instalação da Usina. Parte das crianças não acompanha mais os pais ou outros parentes na comercialização de peixes grandes. “Segundo os relatos, para pescar peixe grande é preciso ir para lugares mais distantes da comunidade, obrigando os pais a ficarem mais dias fora de casa. Esse tempo mais longe incorre nas rupturas afetivas dessas pessoas com as crianças”, explica Marcos.

As formas de resistência nas comunidades ocorrem a partir da apropriação dos saberes, não apenas do seu lugar de pertencimento, mas também dos saberes de outros espaços. Assim, os resultados da pesquisa apontam que, mesmo nas comunidades mais isoladas, a escola acaba por assumir protagonismo enquanto espaço produtor de conhecimentos e mobilizador de saberes, o que evidencia a necessidade de maior atenção do poder público, especialmente a escolas que existem em situações adversas.

“A resistência se dá em decorrência da apropriação de práticas que são transmitidas de geração em geração e que têm garantido a permanência desse povo no mesmo local, como uma forma de ocupação do espaço, mesmo que, por vezes, isso não seja reconhecido pelo Estado”, reforça. A  falta de reconhecimento se materializa nas dificuldades de atendimento de direitos fundamentais, dentre eles o acesso à saúde, ao saneamento básico, à educação e à própria eletricidade que é gerada pelas águas que correm no rio ao qual têm suas vidas entrelaçadas.

Marcos concluiu, a partir das pesquisas realizadas in loco, que os jogos de linguagem presentes na comunidade não dependem necessariamente da presença da escola, mas que as escolas situadas nesses contextos possibilitam às crianças o acesso a outros jogos de linguagem. “Para tanto, não pode ser qualquer escola, mas uma escola capaz de perceber que, para além dos saberes institucionalizados dos quais as crianças precisam e têm direito de se apropriar, há outros saberes que não precisam da legitimação da escola e, consequentemente da ciência, para existir”, destaca.

O autor da tese destaca que a experiência com os alunos foi “fantástica”, especialmente pela sua familiaridade com a cultura local, já que é nascido e criado na região amazônica. “O fato de eu ser ribeirinho da Ilha do Marajó, onde morei até meus 15 anos de idade, saber andar de canoa, remar, pescar, de um certo modo me aproximou mais ainda das crianças. Acredito que ser pesquisador a partir das nossas experiências, das nossas vivências, faz muita diferença no processo formativo. É preciso ir ao encontro desses sujeitos, de outras pessoas, de outras histórias. E, por vezes, esses sujeitos e histórias estão entranhados nas matas da floresta amazônica”, reflete.

Duração da pesquisa e dificuldades

Iniciada no ano de 2017 e finalizada em 2021, a pesquisa que culminou na tese premiada não chegou a enfrentar contratempos devido à pandemia de covid-19, como aconteceu com tantas outras, mas, por outro lado, o pesquisador relata as dificuldades encontradas com financiamento. “Não tivemos contratempos pela pandemia porque consegui terminar as pesquisas em campo ainda em 2019 e usei o ano de 2020 para sistematizar os dados, fazer a análise e escrever o texto final para a defesa. Os gargalos encontrados para desenvolver a pesquisa foram mais no âmbito financeiro, pois eu não estava com nenhum tipo de bolsa e paguei tudo com meus recursos”, relembra.

Como as idas a campo eram longas e se fazia necessário ficar muitos dias na comunidade, o professor precisava de recursos para comprar alimentação, que muitas vezes se dava na própria comunidade, entre vendas e trocas entre eles, como o peixe, que é a base da alimentação das famílias locais.

O professor explica, ainda, que na região do Xingu não existem ciclos de marés, sendo seis meses de cheia e seis meses de seca, fato que influencia diretamente no modo de viver e lidar com o rio, bem como afeta a logística para a realização de uma pesquisa in loco. Assim, ele destaca que, para desenvolver uma tese no Brasil é preciso levar em consideração alguns elementos, como o financiamento ou a ausência dele, o local onde se faz a pesquisa, principalmente em se tratando da Amazônia, onde os desafios são muito maiores devido às especificidades da região, que incluem deslocamentos de barco e longas distâncias.

Para Marcos, as premiações que a tese conseguiu alcançar simbolizam a resistência junto a esses coletivos, que são produtores de saberes e precisam ter espaço dentro da academia. “O prêmio dá voz a essa realidade, de que dentro dos territórios ribeirinhos há distintos saberes que são marginalizados pela escola/universidade, por serem muitas vezes tomados como saberes inferiores, sem legitimação da ciência”, enfatiza. 

Segundo o pesquisador, as crianças ribeirinhas têm muito a nos ensinar e o prêmio chega como um reconhecimento, uma forma de legitimar diferentes estratégias e possibilidades de se fazer pesquisas de excelência.

Saiba mais:
Prêmio CAPES de Tese 2022
Instituído em 2005, o Prêmio Capes de Teses é concedido anualmente às melhores teses de doutorado defendidas e aprovadas nos cursos de pós-graduação reconhecidos pelo MEC. Desde 2012, a FCC soma esforços com a Capes na valorização de pesquisas em educação, oferecendo um prêmio adicional às teses das áreas de Educação e Ensino, vencedoras nas categorias de Melhor Tese e Menção Honrosa.

As Etnomatemáticas dos alunos ribeirinhos do Rio Xingu: jogos de linguagem e formas de resistência 
Autor da tese: Marcos Marques Formigosa
Instituição: Universidade do Vale do Taquari (Univates). Programa de Pós-Graduação em Ensino
Orientadora: Ieda Maria Giongo

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