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Alterar o Censo a essa altura é desconsiderar um longo processo de discussão republicana, transparente e participativa, pondera Jannuzzi em entrevista à FCC

 

|23/05/19

A possibilidade de redução do questionário do próximo Censo Demográfico anunciada pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), devido à restrição orçamentária, foi criticada pelo especialista Paulo de Martino Jannuzzi, que esteve em São Paulo para ministrar o curso Avaliação Sistêmica de Programas Sociais no DPE (Departamento de Pesquisas Educacionais) da FCC (Fundação Carlos Chagas).

Ex-secretário de Avaliação e Gestão da Informação do MDS (Ministério de Desenvolvimento Social), Jannuzzi é professor do Programa de Pós-Graduação em População, Território e Estatísticas Públicas da ENCE (Escola Nacional de Ciências Estatísticas) do IBGE. Também é membro do Painel de Especialistas em Avaliação (2017-2018) do International Evaluation Office, do PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento), em Nova York.

Em entrevista, ele comenta como as mudanças no desenho da principal pesquisa sociodemográfica do país podem afetar a gestão e a avaliação de políticas e programas sociais. Leia a seguir:

Qual a importância das informações produzidas e disseminadas pelo IBGE?

Paulo de Martino Jannuzzi: Os levantamentos realizados pelo IBGE, Inep (Instituto Nacional de Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira) e outras instituições são fontes fundamentais para produção de avaliações gerais de políticas públicas. Permitem, por exemplo, construir indicadores que refletem os efeitos conjugados de uma série de programas sociais e a tomada de decisões econômicas. Em alguns casos, possibilitam dimensionar impactos de programas mais específicos, como foi o caso das PNADs (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) entre 2003 e 2015, em que se coletaram informações sobre o Bolsa Família, o Pronatec, o acesso ao microcrédito, etc. Os censos demográficos trazem evidências insubstituíveis para avaliar efeitos integrados de políticas públicas no território na medida em que permitem aprofundá-los, segundo diferentes contextos operacionais, combinando a abrangência local dos programas com a existência de equipamentos públicos, a capacidade de gestão e o nível de vulnerabilidade social. Os impactos da redução da mortalidade infantil no país foram estimados a partir desse tipo de estratégia metodológica, assim como os efeitos da redução da evasão escolar. Ademais, eles permitem estimar as implicações de políticas sobre públicos mais específicos, já que a amostra permite produzir estimativas robustas dentro de intervalos de confiança razoáveis. Isso é fundamental para o cumprimento de compromissos assumidos nos Planos Nacionais de Saúde, Educação e de Assistência Social e também aqueles subscritos em fóruns internacionais como a Agenda 2030, etc.

Como especialista em avaliação de programas sociais, que faz uso de estatísticas e dados sociais produzidos em diversas instâncias, qual a sua análise sobre a polêmica atual em torno da redução do questionário do próximo Censo do IBGE? 

Paulo de Martino Jannuzzi: Propor mudanças nesse momento não é uma atitude adequada. Estamos a um ano da sua aplicação, depois de muitas experiências e testes em campo e, sobretudo, depois de mais de cinco anos de busca de convergências sobre quais informações levantar, junto a ministérios, estados e municípios, movimentos sociais, academia e sociedade. Soa como uma interferência inadequada. Cada informação planejada é fruto de muita discussão técnica e política, de modo a permitir que os diferentes usuários possam dispor de informação crucial para as atividades de planejamento urbano, formulação de políticas nacionais e avaliação geral do esforço público realizado no passado. Não há fontes alternativas com a qualidade e a cobertura necessárias para substituí-lo, nem é possível desenvolver outros levantamentos no curto prazo.

Como essa decisão, no âmbito de uma instituição federal, pode trazer implicações para outros entes federados?

Paulo de Martino Jannuzzi: O tamanho da amostra, de aproximadamente 10%, é planejado para permitir a produção de estimativas robustas para pequenas áreas e conjunto de bairros nos municípios brasileiros. Sem elas, o planejamento urbano, por exemplo, é severamente comprometido. Enfim, o IBGE é uma instituição com plano de trabalho definido com muita antecedência. Mudanças de curto prazo podem custar milhões de reais em falhas no processo de planejamento e avaliação de políticas realizadas nos municípios. Esse é um aspecto central a destacar: o Censo é uma fonte insubstituível para o planejamento dos municípios. Alterá-lo a essa altura é desconsiderar um longo processo de discussão republicana, transparente e participativa. Tais características são reconhecidas internacionalmente, a ponto de o IBGE prestar assessoria internacional para vários países e ter chefiado por vários anos a Comissão de Estatísticas para a Agenda 2030 de Desenvolvimento Sustentável.

Quais são as implicações da possível redução do questionário do Censo para as políticas sociais e, mais especificamente, para a área educacional?

Paulo de Martino Jannuzzi: Retirar quesitos que permitam fazer melhor caracterização do mercado de trabalho irá prejudicar a formulação de programas de inclusão produtiva, de trabalho decente e projetos de desenvolvimento local, bem como de combate ao trabalho infantil. Não há fonte de informação com detalhamento que permita diagnosticar essas questões. O Censo é a única fonte que permite captar com completude o perfil de ocupação e a base produtiva local e regional. Como desenvolver programas de desenvolvimento local sem conhecer as especializações locais e as carências produtivas nos municípios? Como identificar os bolsões ainda resistentes e infelizmente crescentes de trabalho infantil, trabalho escravo e trabalho informal? Não tenho dúvidas de que parte da queda do trabalho infantil entre 1996 e 2014 se deve à disponibilidade de informações municipais nos Censos e a caracterização do tipo de trabalho em que essas crianças estavam envolvidas. No mesmo sentido, retirar informação sobre rendimentos – do trabalho e demais rendas – vai limitar a possibilidade de identificação dos públicos-alvo de programas como o Bolsa Família, Tarifa Social de Energia Elétrica, Cisternas, Eletrificação Rural. Os Mapas de Pobreza em nível de setor censitário, construídos com informações dos Censos 2000 e depois de 2010, foram fundamentais para as estratégias de inscrição e busca ativa de famílias para o Cadastro Único, primeiro passo para garantir o acesso a esses programas. A boa cobertura do Bolsa Família junto a essas famílias mais pobres se deve, em boa medida, a esses mapas. Na Educação, da mesma forma, seria um retrocesso retirar quesitos introduzidos nas últimas décadas para captar públicos fora da educação básica nos municípios brasileiros. Como estimar a demanda por creches ou fazer a busca ativa de crianças que estão fora escola sem essas informações em cada município? Como garantir o cumprimento de metas de cobertura e equidade do Plano Nacional de Educação em cada município sem esses dados? O EducaCenso do Inep só dispõe de dados de crianças na escola. Ademais é preciso conhecer não só o volume, como o perfil dessas crianças fora da escola. Se a agenda da segurança pública é, de fato, uma prioridade, como justificar a subtração de informações sobre mortalidade de adultos, com nível de detalhamento não provido ainda por outros registros de mortalidade? Essas informações foram cruciais para o desenho do Programa Juventude Viva nos anos 2011-2014, voltado a mitigar a sobremortalidade de jovens negros nas principais metrópoles brasileiras. Enfim, as informações que estão no questionário do Censo têm uma justificativa técnica e política bastante embasada para estarem ali. Foram demandas de gestores, movimento social, pesquisadores. Não saiu voluntariosamente da cabeça de um técnico do IBGE…

Há margem para cortes no questionário sem que haja perda de informações?

Paulo de Martino Jannuzzi: Insisto que o questionário é um fruto de décadas de aprimoramento técnico e pactuação política. Os quesitos que estão nele têm história e memória institucional. Trata-se de registros de como a sociedade brasileira se vê e é natural que tenham sido ampliados nesses quase 150 anos de história de sucesso. A sociedade e a economia são mais complexas, as políticas públicas foram estruturadas ao longo dos últimos 30 anos, os planos nacionais e pactos setoriais tornaram-se mais abrangentes, requerendo informações mais detalhadas em muitos aspectos. Temos de lidar com problemáticas novas e outras muito antigas pelo território nacional e em cada localidade que não podem ser exauridas com 10 ou 50 quesitos de informação.

Qual é a relevância das perspectivas sistêmicas para a avaliação de políticas públicas, que foram destacadas ao longo do curso?

Paulo de Martino Jannuzzi: Trata-se de uma abordagem mais abrangente para análise diagnóstica, de processo e de resultados das políticas públicas. Parte do pressuposto que as intervenções públicas são empreendimentos complexos, intersetoriais e interfederativos, multiobjetivos e operados por milhões de agentes. Não são projetos sociais isolados. Desempenho escolar, melhoria do padrão de crescimento de crianças ou redução da pobreza não são resultados produzidos por ações e programas isolados, mas por um conjunto amplo de intervenções. Há, pois, que se valer de estratégias que privilegiem a captação de efeitos sinérgicos de programas setoriais, nos diferentes públicos afetados. A avaliação sistêmica parte do pressuposto de que a triangulação de metodologias tende a produzir evidências mais robustas acerca dos efeitos dos programas, tal como captadas por diferentes técnicas, sujeitos e perspectivas interpretativas. Não se pretende neutra, já que nenhum desenho de política pública o é. Enfim, avaliação sistêmica procura valorizar a produção de evidências, tanto quanto sua disseminação e apropriação por agentes que possam fazer bom uso das mesmas, para aprimorar programas e políticas legitimados pela sua priorização na agenda pública. Não se propõe produzir decisões, mas informar os gestores para que tomem decisões políticas com base em boa informação técnica. Por tudo isso, essa perspectiva é bastante inovadora em relação a outras abordagens que se veem de forma um tanto dogmática e mítica no campo da avaliação. Trata-se de uma perspectiva contra-hegemômica aos modelos preconizados por comunidades epistêmicas formadas segundo valores, técnicas e recomendações dos bancos internacionais de fomento ao desenvolvimento. Oferece alternativas mais plurais para se produzir informação que pode, de fato, fazer diferença no aprimoramento de um programa público.