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Infância Yanomami: o retrato da exclusão e da resistência por uma educação que respeite saberes indígenas

Estudo do UNICEF revela barreiras à aprendizagem de crianças e jovens Yanomami e propõe ações para fortalecer o ensino alinhado às tradições do povo

Autor- Brenda Teixeira,Fluxo Educação -20/10/2025 19:56:58

Em meio ao quadro de emergência humanitária recente da Amazônia, o povo Yanomami enfrenta desafios não apenas relacionados à saúde e à segurança alimentar, mas também à educação. Três em cada quatro Yanomami são crianças, adolescentes ou jovens, segundo o UNICEF (Fundo das Nações Unidas para a Infância), o que evidencia a centralidade da infância e da juventude para o futuro desse povo que habita a maior terra indígena do Brasil.

O relatório Infância e Juventude Yanomami, produzido pelo UNICEF em parceria com a Hutukara Associação Yanomami (HAY) e com financiamento do Departamento de Proteção Civil e Ajuda Humanitária da União Europeia (ECHO), traz análises inéditas sobre como é nascer e crescer sendo Yanomami. A publicação sistematiza pela primeira vez a perspectiva dos próprios indígenas sobre a infância e a juventude, reunindo depoimentos, estudos e documentos construídos e validados com associações Yanomami.

Mais do que um diagnóstico social, o relatório é um convite à escuta. Ele evidencia tanto a riqueza cultural e espiritual desse modo de vida quanto os desafios para garantir o acesso a direitos fundamentais — e entre eles, o direito à educação escolar.

Nas comunidades indígenas, aprender é viver. A educação começa muito antes da escola — na convivência com os mais velhos, nas histórias contadas ao redor da fogueira, nas práticas de caça, plantio e cuidado coletivo. A escola, quando chega, precisa dialogar com esse universo, e não substituí-lo.

O desafio, no entanto, é fazer isso dentro de um sistema ainda estruturado segundo modelos coloniais de ensino, distantes das realidades locais, e com precariedade estrutural.

Um retrato da exclusão

Segundo o estudo Educação Escolar Yanomami, que integra o relatório do UNICEF, 12 das 31 escolas Yanomami em Roraima estão paralisadas, e há regiões da Terra Indígena onde nenhuma unidade funciona desde 2016. 

Os dados revelam uma queda expressiva nas matrículas: enquanto em 2016 havia 3.050 alunos matriculados em 46 escolas públicas Yanomami nos estados de Roraima e Amazonas, em 2022 esse número caiu para apenas 1.457 estudantes em Roraima, todos entre o primeiro e o quinto ano do ensino fundamental, sem registros no ensino médio. Entre os motivos estão o desmonte das políticas públicas de educação escolar indígena, a falta de professores formados, de materiais didáticos adequados e de assessoria pedagógica. O relatório aponta que, em muitas comunidades, jovens e crianças crescem sem a possibilidade de aprender a ler e escrever.

O documento relembra as fases da educação Yanomami: das primeiras escolas missionárias, nos anos 1950, à criação do Magistério Yarapiari em 2001 — um marco de autonomia e formação de professores indígenas. No entanto, a partir de 2012, o avanço da burocratização e o enfraquecimento de programas federais, como o Território Etnoeducacional Yanomami e Ye’kwana (TEEYY), levaram ao colapso do sistema. A extinção da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (SECADI), em 2019, agravou a situação, interrompendo a coordenação nacional de políticas voltadas à educação indígena.

A desigualdade além do contexto amazônico

Censo Escolar 2024 confirma que os desafios da educação indígena no Brasil permanecem estruturais no contexto geral. Há mais de 81 mil estudantes matriculados em escolas indígenas, distribuídos principalmente nas regiões Norte e Centro-Oeste, mas os indicadores preocupam. A infraestrutura é precária: em comparação com as escolas quilombolas de ensino fundamental, as taxas das escolas indígenas são baixas: menos de 25% possuem computadores para os alunos, e 44,1% têm acesso à internet de qualidade. 

No percentual de escolas de educação infantil (creche e pré-escola) por tipo de recurso disponível, considerando espaços de aprendizagem, equipamentos e infraestrutura, a educação indígena lidera apenas no quesito área verde em comparação às outras modalidades. Os índices mais baixos são os de presença de quadra de esportes (5,7%) e de parque infantil (5,8%). 

Esses dados indicam barreiras persistentes à permanência e à aprendizagem, especialmente nos primeiros anos, etapa decisiva para o desenvolvimento infantil.

Diálogos possíveis entre educação escolar e saber tradicional 

As tensões entre os modelos coloniais de ensino e os saberes tradicionais indígenas são discutidos no artigo Escolha de saberes a ensinar na escola indígena: dois casos Guarani em São Paulo, publicado na revista Cadernos de Pesquisa, da Fundação Carlos Chagas. O estudo, de autoria de Elie Ghanem, Fabio Nogueira da Silva e Diana Pellegrini, analisa duas escolas Guarani, uma localizada na Terra Indígena Jaraguá, na capital paulista, e outra em Bertioga, para entender como se escolhem os saberes que circulam dentro da escola indígena e como essas escolhas podem preservar culturas e comunidades locais.

Os autores relatam que os professores indígenas produzem práticas de autonomia que, mesmo pontualmente, superam o molde colonial. A pesquisa mostra que, nesses espaços, os professores equilibram o ensino de português e matemática com o fortalecimento da língua e dos conhecimentos tradicionais. São tentativas de reconciliar a educação formal e o modo de vida Guarani.

Na Escola Estadual Indígena Djekupe Amba Arandy, no Jaraguá, a sala de aula se estende para a floresta, a casa de reza e o pátio da aldeia. As crianças aprendem a ler e escrever, mas também a cantar, plantar e respeitar os espíritos da mata. Essas práticas são definidas como a lógica da inovação educacional: pequenas iniciativas locais, guiadas pela autonomia dos professores e das lideranças, que buscam reinventar o currículo a partir da realidade da comunidade. 

As escolas Guarani analisadas na pesquisa, portanto, não apenas ensinam, mas contribuem para a preservação cultural. Em meio à falta de estrutura e apoio institucional, a escola se torna um espaço de diálogo entre o saber ancestral e o conhecimento acadêmico.

Infância, cultura e o direito de aprender

O relatório do UNICEF ressalta que compreender o que é nascer e crescer sendo uma criança Yanomami é essencial para formular políticas públicas que respeitem as especificidades culturais. As informações e recomendações do estudo podem contribuir para organizações e gestores entenderem as particularidades para trabalhar com e para essas populações. 

A experiência Yanomami expõe a urgência de garantir educação como direito e como expressão cultural. Já entre os Guarani, as escolas que resistem no cotidiano das aldeias mostram que é possível educar sem apagar as origens. Em comum, há a luta pela autonomia da língua, do território e do saber.

Os professores indígenas configuram práticas de autonomia que superam, ainda que pontualmente, o modelo colonial de ser, saber e aprender. São essas pequenas transformações, feitas na escala na comunidade, que reforçam a possibilidade de uma educação capaz de unir mundos: o da tradição e o do futuro.

Saiba mais


Relatório Infância e Juventude Yanomami - O que significa ser criança e os desafios urgentes na Terra Indígena Yanomami


Escolha de saberes a ensinar na escola indígena: dois casos guarani em São Paulo

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